sábado, 9 de julho de 2016

AS NOVAS FACES DA ESCRAVIDÃO

O relatório anual da Fundação Walk Free apontou para a existência de 45,8 milhões de pessoas em situação análoga a escravidão em todo o mundo. Apenas 5 países concentram 58% desse total: Índia, Uzbequistão, China, Paquistão e Bangladesh. Foram pesquisados 167 países. A Fundação Walk Free é uma organização filantrópica que tem sede na Austrália. Foi fundada em 2012 pelo casal Andrew e Nicola Forrest, proprietários de empresas de mineração.
É considerado trabalho escravo toda e qualquer atividade forçada que retire do outro a liberdade. Dentro desse contexto, a exploração sexual, o tráfico de pessoas, o trabalho infantil, o recrutamento para conflitos armados e o trabalho forçado de forma geral são definidos como escravidão moderna.
O que causa preocupação é que os números cresceram desde o último relatório da Fundação Walk Free. Em 2014, havia 35,8 milhões de pessoas em condições de trabalho escravo em todo o mundo. Em 1 ano, um amento de dez milhões ou 28%. Hipoteticamente, os numerosos conflitos armados em países onde imperam regimes totalitários e a consequente migração de refugiados pode ter contribuído para essa estatística.
Mas, não só isso. Pobreza, desigualdade social e falta de políticas públicas mais consistentes, sobretudo em países pobres ou em desenvolvimento, são fatores preponderantes para a perseverança do trabalho escravo. Há muita dificuldade, por parte do ente público, em definir estratégias de combate e fiscalização. A começar pela pouca oferta de trabalho, sobretudo em áreas rurais.
O Brasil tem posição pioneira no combate ao trabalho escravo. Em 1995, perante à Organização Internacional do Trabalho (OIT), foi a primeira nação a reconhecer situação de escravidão moderna em seu território. Até 2014, mais de 47 mil pessoas foram libertas dessa condição no país.
Por ter avançado a condição de protagonista na América Latina, devido ao crescimento econômico que apresentou na primeira década dos anos 2000, o Brasil virou destino predileto de imigrantes sul-americanos. Entretanto, uma boa parcela dos que aqui aportaram não conseguiu regularizar sua situação. Ilegais, precisaram buscar meios de sobrevivência. É aí que entram os exploradores, oferecendo condições sub humanas de trabalho. De acordo com a OIT, são cerca de 200 mil escravos modernos em território nacional.
O Brasil está entre as nações que aboliram a escravidão tardiamente. Por aqui, somente no fim do século XIX, é que essa condição foi firmada de maneira oficial. Entretanto, todos sabemos, a prática de uma lei demora mais tempo para se tornar efetiva do que sua promulgação. A escravidão clandestina, não oficial, sempre foi uma prática comum. Naquela época por motivos outros que os atuais. Entretanto, guardadas as diferenças, há uma semelhança entre as formas de escravidão: a exploração da mão de obra barata. O trabalho escravo sempre teve, em qualquer momento, o amparo da lógica exploradora do mercado. Até mesmo sua abolição, no Brasil, teve apoio de setores da sociedade que necessitavam de mercado consumidor em uma época de crise econômica fomentada, sobretudo, pela queda nas exportações de matéria prima.
E se engana quem pensa que essa condição trabalhista está presente somente em regiões ermas do país. Nos grandes centros há também registros desse tipo de exploração. Vide o caso das obras de ampliação do Aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, em 2013, quando 111 trabalhadores, todos de origem nordestina, aguardavam há dias, enfurnados em casebres degradantes, a liberação de seus documentos pela OAS, empresa responsável. Essa obra fazia parte dos encargos da FIFA para a Copa do Mundo.
Não por coincidência, as obras para as Olimpíadas também trazem irregularidades que se aproximam às condições de trabalho escravo. Desde falta de segurança até instalações aviltantes, diversas obras são embargadas pela justiça do trabalho. Muitos trabalhadores morreram nas empreitadas para os grandes eventos esportivos. Um legado indesejado.
As competições esportivas parecem mesmo ser terrenos bem férteis para a proliferação da exploração do trabalhador. Veja o exemplo do Catar, sede da Copa do Mundo de 2022. Grandes conglomerados europeus tomaram à frente nas construções de estádios e infraestrutura. Segundo levantamento da Confederação Internacional de Sindicatos, essas empresas terão lucro de US$ 15 bilhões até 2022. Acontece que há denúncias sérias de trabalho escravo contra essas empresas que, em seus países de origem, não ousam colocar em prática essas ilegalidades.
Os países que sediam Copa ou Olimpíadas se transformam, temporariamente, em estados de exceção. Se submetem à leis do COI e da FIFA, entidades que são verdadeiras sangue sugas e fazem o que bem entendem. Isso inclui cerrar os olhos para as condições degradantes de trabalho e exploração humanos.
Segundo dados da Pastoral da Terra, o ano de 2013 foi um marco nas estatísticas. Pela primeira vez, o percentual de trabalho escravo nas regiões urbanas superou o das rurais. Neste período, 56% dos registros foram feitos em grandes cidades, enquanto 44% estavam no interior. Tudo fruto das grandes obras para a Copa do Mundo.
O problema reside no fato de que essas práticas, embora extremamente maléficas para o trabalhador, não são reconhecidas como escravizantes. O projeto de emenda constitucional à lei de 1999, de autoria do então senador Romero Jucá, o mesmo que foi afastado recentemente do governo Temer, propõe limitar a abrangência do que se pode definir como trabalho escravo. O texto propõe as retiradas da jornada exaustiva e das condições degradantes como características de escravidão moderna. Há os que considerem isso um retrocesso na lei, gerando assim um impasse que impede sua votação. Já são dois anos de espera no senado.
O pano de fundo desse embaraço são os interesses de empresários ruralistas que, em sua maioria, desrespeitam às leis trabalhistas básicas e não querem ser enquadrados na lei do trabalho escravo sob pena de, inclusive, perderem suas posses. Como disse acima, a escravidão, em qualquer tempo, tem sua lógica calcada na exploração de mercado.
A Constituição de 1988 é bem clara ao definir a valorização do homem e do trabalho como um de seus princípios fundamentais. Entretanto, a prática, mais uma vez, se distancia da realidade. Sobretudo, porque o código penal vigente, que prevê pena de prisão para quem impõe trabalho escravo, é de 1940. A escravidão contemporânea desenvolveu nuances que escapam à lei. Se utiliza de subterfúgios para fazer parecer legal o que é arbitrário.
Esse descompasso entre Lei Penal e legislação trabalhista é traduzida em números alarmantes. São 568 empresas compondo a chamada "ficha suja". Todas elas praticam, comprovadamente, trabalho escravo. Nenhuma delas, por outro lado, foi incriminada penalmente. O mais grave: os empresários se aproveitam desta brecha para limpar seus nomes.
Observemos, por exemplo, às condições desumanas as quais são submetidas certas classes de trabalhadores que são obrigados a produzir em regime de metas. Bancários, operadores de telemarketing e outros do gênero, laboram  sob pressões absurdas, excedendo suas cargas horárias e passando por fortes constrangimentos. Não são raros os casos de pessoas que desenvolvem enfermidades físicas e/ou mentais em decorrência dessas condições. No entanto, são todos empregados sob o regime da consolidação das leis trabalhistas, com direitos garantidos. Até que ponto essa situação não deve ser entendida como uma forma de exploração do trabalho? É importante notar, contudo, que a Organização Internacional do Trabalho, em convenção de 1932, não considera esse tipo de situação como trabalho forçado. No entanto, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, documento base que norteia os princípios fundamentais da existência, tem como alicerce fundamental para todos os seus princípios a "dignidade da pessoa humana".
Interessante notar que a maioria dos empregados se submete a esse tipo de escravidão moderna, sem ao menos contestá-la. A maioria se entrega a um ciclo de reclamações infinitas, como mantras que aprisionam suas consciências. Na maior parte, são pessoas infelizes que seguem seu rumo sob o risco de não conseguirem nada melhor. Eis o discurso produzido pela classe dominante e que se retroalimenta dessas lamúrias.